Hormônio abre perspectivas para o tratamento do diabetes


Um dos mais poderosos mitos gregos de todos os tempos é o da tragédia do titã Prometeu, que roubou o fogo do Olimpo. Penalizado com o sofrimento humano, Prometeu rouba uma brasa da forja do deus ferreiro Hefesto e a entrega aos homens. Furioso, Zeus manda acorrentar Prometeu no pico do Cáucaso e o condena a ter o fígado eternamente devorado por uma águia. Toda vez que a águia terminava de dilacerar o fígado de Prometeu, ele renascia e a águia começava tudo novamente.

 

Não é de hoje que a ciência sabe da capacidade do fígado em se regenerar e sua importância para o corpo humano. Entretanto, o que não se sabia é que um importante hormônio da regeneração do fígado, “o HGF”, parece desempenhar um papel relevante na obesidade e no diabetes tipo 2. Esse hormônio controla o crescimento das células beta do pâncreas (ilhotas de Langerhans), responsáveis pelo aumento da insulina no sangue, fator que antecede ao diabetes.

 

O biomédico Tiago Gomes Araújo investigou a participação do hormônio HGF – ou fator de crescimento do hepatócito – produzido principalmente pelo fígado, na resistência à insulina. A pesquisa foi realizada no Laboratório de Investigação Clínica em Resistência à Insulina (Licri) da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) e no Laboratório de Pâncreas Endócrino do Instituto de Biologia (IB), ambos da Unicamp. A orientação foi do professor Mario José Abdalla Saad.

 

A pesquisa resultou na tese de doutorado “Caracterização do papel do HGF como elo entre o aumento da massa da ilhota/hiperinsulinemia e a resistência à insulina”, defendida por Tiago no final de outubro dentro do programa de Fisiopatologia Médica da FCM da Unicamp e no artigo “Hepatocyte growth factor plays a key role in insulin resistance-associated compensatory mechanisms”, recém-publicado na revista norte-americana Endocrinology.

 

Classicamente, em endocrinologia, existe um processo em que uma glândula controla outra. O hipotálamo, por exemplo, controla a hipófise e esta, a tireoide. Ambas, por sua vez, controlam testículos e ovários. É uma situação de equilíbrio. O mesmo princípio vale para o diabetes.

 

“Tínhamos pistas de que um fator circulante controlava isso. Fizemos uma lista dos possíveis hormônios conhecidos e chegamos à conclusão que o HGF era um forte candidato”, explicou o médico endocrinologista Mario José Abdalla Saad.

 

O HGF é um hormônio produzido, principalmente, pelo fígado. Ele é identificado como um fator circulante envolvido na regeneração do fígado depois de uma lesão hepática. Além disso, é reconhecido que o HGF também exibe atividades de duplicação genética, produção da forma e migração celular em uma ampla variedade de órgãos, incluindo o fígado, rim, cérebro e pâncreas.

 

A resistência à insulina é manifestada pela perda da capacidade da insulina ativar sua via de sinalização. Em nível molecular, a insulina inicia sua atividade biológica ao ligar-se a seu receptor localizado na membrana das células. A resistência à insulina está presente na obesidade e, principalmente, no diabetes tipo 2.

 

A pesquisa de Tiago teve como objetivo mostrar a relação de causa-efeito entre o aumento dos níveis circulantes de HGF, o aumento de células beta do pâncreas, a hiperinsulinemia compensatória e a força dessa associação.

 

“Tanto in vitro quanto in vivo, o HGF estimula a secreção de insulina e o aumento da massa de ilhotas do pâncreas. Os níveis deste fator estão elevados na situação de resistência insulínica mais comum, que é a obesidade. Entretanto, essa vinculação ainda não havia sido explicada”, disse Tiago.

 

O estudo foi realizado em ratos. Eles foram divididos em dois grupos: um foi alimentado com ração padrão e água para roedores e outro com dieta de cafeteira, rica em refrigerantes, biscoitos, chocolates, bolos e salgados. Após seis semanas, o grupo de ratos com dieta de cafeteria foi tratado com uma solução de HGF recombinante ou com um inibidor farmacológico do receptor do HGF.

 

Além disso, com a intenção de provocar o aumento dos níveis internos de HGF, outro grupo de ratos foi submetido à cirurgia para remoção de 70% do fígado.

 

Para demonstrar a associação entre os níveis de HGF e a hiperinsulinemia, o pesquisador usou outros dois modelos animais: camundongos geneticamente modificados para obesidade e camundongos alimentados com dieta hiperlipídica, rica em gordura. O efeito dose-resposta (fracionamento) de HGF foi testado neste grupo de animais. Todos os procedimentos foram aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da FCM.

 

Os dados obtidos pelo pesquisador mostraram que nos diferentes modelos de resistência à insulina, houve uma correlação forte e significante entre os níveis de HGF circulante, o aumento do número de células (hiperplasia) das ilhotas do pâncreas e os níveis de insulina. Além disso, observou-se no experimento que o aumento nos níveis de HGF circulante precedia à resposta compensatória associada com a resistência à insulina.

 

O mesmo aconteceu após a retirada parcial do fígado. Os resultados mostraram uma clara relação entre os níveis de HGF sobre o aumento na massa de ilhotas de Langerhans durante o processo de regeneração do órgão.

 

“No modelo animal de obesidade, observamos um aumento do HGF no fígado e no tecido adiposo, que são dois tecidos muito bem caracterizados em situações de resistência à insulina. Assim, podemos sugerir que a resistência à insulina, de alguma forma nestes tecidos, pode induzir um aumento do HGF. Isso passa a ser irônico, pois no sentido de proteger o indivíduo do desenvolvimento do diabetes, o organismo cria uma resposta compensatória aumentando a massa de células beta do pâncreas levando, assim, à produção de mais insulina para compensar o aumento do açúcar no sangue”, disse Tiago.

 

Assim como Prometeu, que roubou o fogo do Olimpo e teve seu fígado devorado diariamente pela águia, o processo de compensação passa a ser um mecanismo perverso. E como quebrar esse processo? Aí é que está a importância e relevância da pesquisa de Tiago.

 

O HGF exerce os seus efeitos por meio de seu receptor na superfície celular. Este receptor, denominado c-Met, quando ativado, induz a formação de um complexo chamado de c-Met/receptor de insulina. A via de sinalização da insulina tem um papel importante no aumento da massa das ilhotas do pâncreas. A formação desse complexo amplifica a via de sinalização de insulina, em cascata.

 

A pesquisa demonstrou que este é o mecanismo molecular pelo qual o HGF induz a resposta compensatória associada com a resistência à insulina. O estudo também provou que o bloqueio do receptor do HGF, por meio de um inibidor farmacológico, foi capaz de interromper esse mecanismo de compensação, observado nas células beta do pâncreas.

 

Outro ponto importante da pesquisa foi evidenciar que o efeito compensatório do HGF não está apenas relacionado com as ilhotas do pâncreas. No fígado de ratos obesos induzidos por dieta, onde a sinalização da insulina já se encontrava reduzida, foi observado que, após o tratamento destes animais com o bloqueador do c-Met, ocorreu uma piora nesta sinalização.

 

“Estes dados suportam a ideia de que a sinalização do HGF tem um papel protetor na resistência à insulina e que existe uma correlação entre o HGF e o aumento da massa de células beta do pâncreas. Isto representa o mecanismo molecular pelo qual o HGF induz à resposta compensatória. Nosso estudo fornece evidências adicionais para o papel do fígado e do HGF nos mecanismos de resistência à insulina associada à obesidade e ao diabetes tipo 2”, disse Tiago.

 

O professor e orientador Mario Saad reforça a importância da descoberta: “O HGF passa a ser um alvo-terapêutico, pois melhora a ação da insulina nos tecidos periféricos. Se conseguirmos medicamentos que possam potencializar a ação do HGF, vamos conseguir drogas para tratar melhor o diabetes tipo 2. Além disso, isso mostra que ele pode ser usado para proliferação das células beta, representando um importante passo para o transplante de ilhotas pancreáticas em pacientes com diabetes tipo 1”, disse Saad.

 

A pesquisa teve apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).