Do Pronto Socorro na Unicamp à aldeia no Amazonas


No norte do estado do Amazonas, na região conhecida como Cabeça do Cachorro, a cidade de São Gabriel da Cachoeira abriga uma população de cerca de 40 mil pessoas, a maioria indígena. A alguns quilômetros do centro, a cidade exibe um ambiente paradisíaco, um verde e um azul conservados que encantaram a médica generalista e neurologista Beatriz Caputo, que atua no Centro de Saúde da Comunidade, desde 2006, e no Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp desde 1994. O professor Ademar Yamanaka, diretor clínico do Gastrocentro, participou da edição neste ano.

Lá, o povoado de Iauaretê tem comida, tem água, porém, seus moradores recebem pouca atenção à saúde. A falta de generalistas chamou a atenção da médica, que chegou aos indígenas por sua participação em duas das expedições do Projeto Amazonas, criado por Fernando Lubrechet, coordenador ao lado de profissionais liberais do município de Pirassununga, com parceria de missionários do Sagrado Coração de Jesus (Colégio John Kennedy), do Exército brasileiro, da Força Aérea Brasileira e do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), órgão da Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde.

A quantidade de água que escorre dos Andes torna o terreno do povoado de Iauaretê muito alagado, a ponto de impossibilitar o transporte por terra. Os 300 quilômetros de distância do centro de São Gabriel foram percorridos em seis horas por Beatriz e seus companheiros de expedição a bordo de uma pequena embarcação motorizada. Trajeto este que os nativos, com seus barcos movidos a motor de mobilete (chamado motor de rabeta), levam quatro dias para ser percorrido.

Chegar ao atendimento médico na maioria das vezes é possibilidade descartada por esta dificuldade. E, por sua vez, os generalistas também chegam somente em missão. Não há quem olhe pela saúde dos nativos constantemente, lamenta Beatriz. No hospital, apenas atendentes de enfermagem. E muitas vezes se contentam com prescrições dos farmacêuticos do Exército, os quais, muitas vezes, se encarregam de exames de sangue, testes de malária e, se precisar, até dão tratamento de malária.

Os rostos da realidade mais uma vez reforçaram a importância de formar médicos que saibam usar o conhecimento desenvolvido na academia para curar doenças que pareçam simples. Apesar de experimentar a realidade do pronto-socorro logo depois da formatura no curso de medicina da Unicamp, em 1989, Beatriz quis ver de perto como se organizam os brasileiros que estão à margem do sistema de saúde. Observou que, enquanto em algumas regiões as pessoas lutam para melhorar o atendimento público, há cidadãos que nem têm acesso.

De olho nos avanços tecnológicos noticiados pelos meios de comunicação, aos quais têm acesso, os indígenas têm consciência da falta de atenção, por exemplo, na área de ortopedia. Entre eles, é comum encontrar pessoas com joelho quebrado e não reabilitado. “Alguns deles se locomovem com muita dificuldade. Acabam fazendo o que podem”, relata Beatriz.

A formação para atuar num lugar tão carente como Iauaretê, na opinião da médica, precisa incluir peculiaridades que parecem pequenas, mas são muito importantes como fazer um parto, pequenas cirurgias e outros procedimentos. “Mas nossa formação não é assim. Viramos especialistas. Ou sou só cirurgião, só ginecologista, só clínico geral. Falta formação profissional para este tipo de médico. E o médico de família seria a especialidade que mais se aproximaria disso, mas o Brasil ainda é muito carente nesse aspecto.”

Os dias difíceis e ao mesmo tempo prazerosos, pela hospitalidade do povo daquele lugar, fizeram Beatriz refletir sobre a vida e sobre a prática médica. Num país em que doenças do trato gastrointestinal ainda levam a óbito e aumentam a mortalidade infantil em alguns Estados, por falta de saneamento, entre outras carências, ela chama atenção para o que de fato faz falta: “As pessoas se vangloriam ao se dizer especialistas em determinadas áreas da medicina e, de fato, precisamos de especialistas e de tecnologia, mas onde está, por exemplo, o especialista em doenças secundárias ocasionadas pela falta de saneamento? Não parece, mas isso é muito sério. É mais fácil ver sintoma raro de doença comum, que sintoma comum de doença rara. Mas hoje todo mundo quer ser um especialista em doença rara. Não adianta formar 300 especialistas em doença rara. Precisamos formar 299 generalistas também. Porque não é só a tecnologia que cuida das pessoas. Não é só remédio”, reforça.

Por outro lado, o governo não apresenta soluções em termos de estrutura de carreira para os médicos, em sua opinião. As pessoas são contratadas, segundo Beatriz, no final do ano são demitidas e no começo do ano seguinte são contratadas. “Por que se faz isso? Por questões trabalhistas. As pessoas não têm férias nem décimo terceiro, nem carreira. Como o médico fará quando ficar velho? Não terá aposentadoria? As pessoas até trabalham por um período do tempo, mas essas questões também dificultam a permanência.”

A oportunidade de dar atenção aos povos indígenas foi proporcionada pelo gastroenterologista Ademar Yamanaka, que a convidou para a primeira expedição em 2012. Este trabalho voluntário a faz abrir aspas sobre sua própria experiência como clínica-geral: “Aprendi muito no pronto-atendimento do HC da Unicamp. Vi muita coisa, muita gente. Se há uma coisa que não sei, tenho uma equipe inteira para recorrer. Não tenho vergonha de perguntar a opinião de um colega. O contato com os mais jovens me atualiza. Se não me relacionar com eles, fico desatualizada, perco a mão. Sou muito grata por trabalhar esses anos todos no Pronto-Socorro da Unicamp.”

Beatriz teme que a medicina esteja, nos últimos anos, se rendendo à pressão da tecnologia e da indústria farmacêutica. No caso da Amazônia, ela destaca para a possibilidade de usar remédio natural (ervas utilizadas pela própria comunidade indígena há centenas de anos), mas os pacientes habituaram-se a procurar um profissional que prescreva remédios. “A propaganda da indústria farmacêutica é muito forte, e o paciente pensa que o médico não é bom por não indicar tratamento medicamentoso. Acaba recorrendo a outro profissional que prescreva.”

Desde 1900, segundo Beatriz, os salesianos mantêm escola no local, e a iniciativa sempre teve boa aceitação entre os índios. Como estão em área de fronteira, são os soldados que garantem comida. É o Exército quem define onde os profissionais devem atender e dão apoio logístico. Por causa da distância, os soldados chegam a ficar seis meses sem voltar para São Gabriel.

De acordo com Beatriz, o carro-chefe do trabalho é a odontologia. A equipe abriga entre oito e dez dentistas, a maioria da Unesp de Araçatuba. “É interessante levar jovens profissionais para conhecer esta realidade. Porque é um jeito de a pessoa se interessar. Se eles não forem até lá conhecer, por que iriam se interessar?” No Pronto Socorro do Hospital de Clínicas da Unicamp, ela tenta transmitir aos médicos mais jovens sua experiência no Amazonas e também a rotina do Pronto Socorro. Se houver uma próxima oportunidade e um estudante ou médico mais jovem quiser ir em seu lugar, Beatriz abre mão da viagem por desejar que outros médicos sejam tocados pelas necessidades de uma parcela da população brasileira que vive uma realidade muito diferente do que a maioria pode imaginar.

Alguns dias fora de casa entre os indígenas são suficientes para mudar certos conceitos, segundo Beatriz. Quando precisam se instalar em São Gabriel, os índios levam pouquíssimos objetos na bagagem: madeira e lona para se abrigar, fogão de uma boca para cozinhar e um cachorro para avisar se tem bicho perigoso. “Nós precisamos de mala, mochila nova, sapato especial? Não. A gente não precisa de tanta coisa assim. Os índios, apesar da carência em que vivem, estão felizes.”

Beatriz também ressalta a organização dos nativos. “Todos têm a função de limpar, cuidar da aldeia.” Sobrevivem com a caça e também se alimentam com porcos, galinhas e contam com muitas frutas, além do principal componente da dieta, a mandioca. A pesca não está entre as principais atividades por conta da acidez da água. “Para se ter ideia, eles bebem água da chuva”, acrescenta Beatriz. Preferem gasolina a dinheiro. “Não se faz nada com dinheiro na aldeia.”

A médica encanta-se com a preservação da cultura, principalmente a língua, mesmo com o acesso à televisão. O horário da novela é sagrado, quando o gerador de energia elétrica fica em funcionamento. “Hoje em dia, não há aldeia que não tenha televisão.” Entre as crianças, a atração é o playstation. “Isso também é problemático por causa da identidade cultural. Hoje, há índios que se identificam mais com a cultura do branco. Alguns querem estudar, sair de lá. Têm outros que não.” Uma mãe confidenciou que, em sua família, a filha está se formando em São Gabriel, enquanto o filho só quer andar de rabeta.

A participação da médica é elogiada por um dos coordenadores do projeto, Fernando Lubrechet. “É preciso evidenciar o brilhantismo, o profissionalismo, o carisma e o amor com que a Bia realiza suas ações. Espero que mais profissionais possam se identificar e dedicar seu tempo às ações humanitárias tão imprescindíveis como esta.”

Permanecer na aldeia por dez dias em 2012 e dezesseis dias em 2013, foi gratificante para a médica, que não tinha ideia de que encontraria tantos povos, tantas etnias. “É um prêmio conhecer esse lugar. Ao chegar lá, vemos que é possível fazer algum trabalho. E nada mais significativo que notar a gratidão das pessoas, o respeito, o carinho. É um lugar de tão difícil acesso que não teria como conhecê-lo se não fosse por meio dessa ação, da iniciativa dos profissionais liberais de Pirassununga, da dedicação dos soldados do Exército e do Projeto Amazonas.”

Maria Alice da Cruz (texto), Antoninho Perri (imagens) e Diana Melo (edição de imagens)
Assessoria de Comunicação da Unicamp