É menino ou menina?A questão costuma afligir os pais em torno do nascimento de uma criança. Da mesma forma, a chegada da adolescência também gera ansiedade em relação às variadas mudanças físicas que ocorrem. Por isso, a ambiguidade genital, condição que impede a pronta definição do sexo de uma criança ao nascer, ou a evolução normal das características sexuais na puberdade, requer cuidado urgente e integrado. “Os distúrbios que afetam a determinação e diferenciação do sexo envolvem não só implicações médicas, mas psicológicas e sociais, pois são cercados de muito tabu, preconceitos e desinformação”, alerta o pediatra Gil Guerra Júnior.
Ele é um dos fundadores do Giedds (Grupo Interdisciplinar de Estudos da Determinação e Diferenciação do Sexo), que acaba de completar 25 anos de atuação. O médico chama atenção para a importância da prontidão no atendimento a esses casos. Cita como referência de conduta a observação escrita em 1976 pelos médicos Donahoe e Hendren, do departamento de cirurgia do Hospital da Criança de Massa chusetts e da Escola Médica de Harvard, nos EUA: “O recém-nascido com genitália ambígua representa um problema que deve ser resolvido de modo rápido e preciso. Caso contrário, pode-se instalar uma tragédia social duradoura por toda a vida, tanto para o paciente como para a família”.
Com equipe composta por pediatras, geneticistas, endocrinologistas, cirurgiões, ginecologistas, radiologistas, anatomopatologistas, médicos-legistas, psicólogos ou psiquiatras e assistentes sociais, o grupo atende casos do gênero de várias localidades do País. O acompanhamento ocorre no ambulatório do Hospital das Clínicas da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Somam mais de mil os pacientes atendidos pelos profissionais que, na atuação conjunta, adquirem condições de realizar o diagnóstico, acolher a família e informá-la sobre as opções de tratamento em 45 dias, em média.
“O que nos levou a criar o grupo foi a constatação de que o atendimento isolado causava atraso no diagnóstico, desinformação e comprometimento da adesão ao tratamento”, informa a geneticista clínica Andrea Maciel Guerra, que coordena o Giedds ao lado do pediatra.
Tabus e desinformação
“Como a ambiguidade genital é uma condição rara, cercada de tabus, há muita desinformação a respeito. A mídia quase não fala sobre isso e a confusão é grande em torno do tema, erroneamente relacionado à homossexualidade, à transexualidade e à perversão sexual”, ressalta Guerra. Em média, o Giedds atende de 6 a 8 novos casos por mês. Todos acompanhados por vários anos. A maior parte resulta da identificação tardia da ambiguidade. “O problema acontece quando a pessoa chega à puberdade e não tem o desenvolvimento esperado das características sexuais”, diz Gil Guerra. “Só aí é que fica sabendo que tem anomalia e necessita de tratamento”.
A ambiguidade genital resume um grande número de situações de malformação genética do aparelho reprodutor, em que, normalmente, o exame dos genitais externos não permite uma definição segura sobre o sexo da criança. “Em algumas delas, as alterações são facilmente perceptíveis, em outras, não”, explica o médico pediatra.
Os casos são desde aqueles em que agenitália externa não tem as características comuns, ou que os órgãos internos relacionados à reprodução apresentam anomalias, que podem levar, por exemplo, à produção indevida de hormônios, até os em que há uma combinação das duas condições. Outra forma, mais rara, é o hermafroditismo, na qual a criança nasce com órgãos sexuais de ambos os sexos, internos e externos, bem formados.
Segundo Andrea, nesses casos a definição não pode smplesmente ser baseada no sexo genético, aquele que em situações de normalidade define XY como sexo masculino e XX como sexo feminino. Isso porque as origens do problema são múltiplas, e podem estar relacionadas a alterações cromossômicas ou enzimáticas, entre várias outras. “Só para ter ideia da quantidade de fatores que levam a uma situação de ambiguidade, podemos elencar, entre os principais, dez diagnósticos”, afirma.
Mesmo assim, nos 25 anos de atuação o grupo nunca enfrentou processos de erro médico ou qualquer tipo de insatisfação relacionada ao sexo orientado por ele. A médica esclarece que o risco de a criança não se adaptar à definição identificada existe, mas a avaliação completa, a conduta clínica correta nos primeiros meses de vida, a colaboração da família e o apoio psicológico fazem com que seja o menor possível.
O trabalho realizado no ambulatório do HC abrange o atendimento especializado, o apoio psicológico à família e a realização dos exames necessários à investigação (genéticos, de imagens, para avaliação dos genitais internos, e de sangue, nos quais são estudados a produção de hormônios sexuais e de outros hormônios envolvidos no funcionamento do aparelho reprodutor).
Por meio do diagnóstico, são apresentados a orientação sobre o sexo em que a criança deve ser criada, os fatores apurados como responsáveis pelas alterações e os procedimentos necessários para a adaptação anatômica e biológica da criança ou adolescente. “A palavra final é dada sempre pela família, após ser informada sobre todos os aspectos envolvidos e discutir, cuidadosamente, a situação com a equipe médica”, afirma Gil Guerra.
Feito o registro civil conforme a decisão tomada, a criança recebe o tratamento médico e cirúrgico necessário para que os seus genitais adquiram e mantenham aspecto correspondente ao sexo definido. O acompanhamento prossegue, com retornos anuais. Na puberdade, os focos principais da atuação são a adequação hormonal para o desenvolvimento das características sexuais e o apoio psicológico. “Uma característica importante do nosso trabalho é o vínculo de confiança que o paciente acaba estabelecendo conosco. Estamos em todas as etapas, isso é fundamental”, avalia o médico.
Simone de Marco – Agência Imprensa Oficial SP