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Existe uma diminuição da força da musculatura respiratória e da capacidade física nos candidatos a transplante de fígado. Essas perdas podem levar a complicações pulmonares, sendo as mais temidas o desenvolvimento de infecções, maior tempo de uso do suporte ventilatório artificial e maior tempo de internação no pós-operatório. Dessa forma, o comprometimento da força muscular no período pré-operatório poderá repercutir negativamente no sucesso do transplante. Estas são algumas das conclusões da fisioterapeuta Cristina Aparecida Veloso Guedes em sua tese de doutorado desenvolvida na Faculdade de Ciências Médicas (FCM).

Segundo a pesquisadora, o estado de gravidade do candidato a transplante, em relação a essas variáveis, ainda não foi estabelecido. “Mas é fato que todo indivíduo submetido a transplante enfrenta perdas, não importando se o seu caso tem maior gravidade, isso de acordo com os critérios do Model for End-Stage Liver Disease (Meld), descrito para classificar a gravidade da doença hepática. Trata-se de um índice matemático que não considera alguns critérios clínicos que – no aspecto físico – teriam peso e mereceriam maior atenção”.

O Meld é utilizado para alocação desses candidatos em lista. Quem tem Meld mais elevado, é transplantado antes, pois possui maior risco de morrer, porém sabe-se que nem sempre está em pior estado de saúde. “Neste trabalho não encontramos correlação com o critério de gravidade e sim com alguns critérios clínicos, como a perda da qualidade de vida, por exemplo. Esses indivíduos relataram muita fadiga em qualquer fase do período de espera em lista de transplante”, informa Guedes.

A fisioterapeuta, orientada pela docente da FCM e coordenadora da Unidade de Transplante de Fígado do Hospital de Clínicas (HC) Ilka de Fátima S. F. Boin, abordou em sua tese os 170 candidatos a transplante que estavam em lista de espera à época da pesquisa, sendo selecionados 130. Ela realizou uma avaliação fisioterapêutica sistemática. Sua intenção era fazer uma intervenção ainda no período pré-operatório, com vistas ao fortalecimento e ao desempenho dos músculos respiratórios. Por volta de 70% da sua amostra foi constituída por pessoas do sexo masculino, na maior parte egressa de outras cidades, com baixo nível socioeconômico e com idade entre 50 e 60 anos.

Quando fisioterapeuta da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do HC, Guedes via que os pacientes do seu estudo mostravam muitas complicações pulmonares e notou que um dos fatores decorria do enfraquecimento da musculatura respiratória, provavelmente já previamente comprometida. A fisioterapeuta, que tinha avaliado o período pós-operatório no mestrado, no doutorado tentou interferir no quadro para verificar qual seria o resultado, de modo a melhorar os números do transplante, do ponto de vista respiratório.

Pesquisando o perfil desse candidato em trabalhos anteriores, a autora da tese não encontrou parâmetros na literatura. Acontece que realizar uma intervenção não seria possível sem uma base – sem conhecer a fundo a população com a qual se estaria trabalhando. Foi então que fez ajustes no projeto original para conseguir desenhar o perfil respiratório desse candidato e de sua capacidade física, esta última avaliada pelo “teste de caminhada de seis minutos”. Este é um teste submáximo, de baixo custo operacional, realizado no próprio corredor do Ambulatório da Unidade de Transplante. “Esta medida vem sendo estimulada por organizações nacionais e internacionais que sinalizam que tais pacientes têm sua capacidade diminuída, perdendo cerca de 30% a 40% de seu desempenho, premissa também observada na minha investigação”, diz Guedes.

Outro ponto analisado por ela foi a qualidade de vida dos pacientes. A despeito desse fator já ter sido alvo de interesse da literatura, a fisioterapeuta desenhou o perfil desses candidatos também. Com o auxílio de um questionário específico, o SF-36, a pesquisadora constatou que esses indivíduos apresentavam uma perda importante nesse quesito, a princípio relacionado aos aspectos físicos.

Guedes expõe que o fisioterapeuta não consegue intervir diretamente no aspecto emocional, psicológico ou mesmo social da qualidade de vida, apenas nos aspectos físicos. “Este foi um dado significativo do meu trabalho que deve continuar sendo seguido nos próximos trabalhos, avaliando a qualidade de vida pós-intervenção. A ideia é sondar se a nossa intervenção pode melhorar a qualidade de vida de tal paciente.”

Complexidade
O fígado é uma glândula constituída por milhões de células e produz substâncias elementares ao equilíbrio do organismo. Ainda que tenha um potencial impressionante de recuperação, certas doenças do órgão provocam insuficiência hepática aguda ou crônica grave, muitos conduzindo ao óbito. Nesses casos, o único recurso terapêutico é a substituição do fígado doente por um fígado sadio, retirado de um doador compatível em morte cerebral ou de um doador vivo que aceite doar parte de seu órgão para ser transplantado.

O transplante é um tipo de procedimento de altíssima complexidade, considerado modernamente um dos maiores desafios do contexto cirúrgico. Para se ter uma ideia, ele pode demorar no mínimo cinco horas e ultrapassar dez horas. “Quanto maior for o tempo de cirurgia, maiores as chances de complicações”, avisa ela, mesmo admitindo que as técnicas cirúrgicas estão cada vez mais aprimoradas.

De acordo com a fisioterapeuta, o transplante não é somente o ato cirúrgico, que em si já é complexo. É um procedimento de grande porte, de tempo prolongado e com riscos anestésicos. Tem este lado e também o do paciente, que envolve a doença de base – a hepatopatia grave. A cirrose hepática, lembra, é uma doença do fígado altamente debilitante. Uma pessoa com essa enfermidade, ao partir para o ato cirúrgico, já chega ao hospital com complicações associadas e bastante fragilizada. Por isso Guedes acredita que o sucesso do transplante depende em grande parte do estado prévio do paciente. “Há uma boa chance de cura, desde que não hajam complicações intraoperatórias e pós-operatórias. Quanto mais equilibrado ele vier para a cirurgia, as chances de êxito serão maiores.”

A abordagem da fisioterapia ainda é pouco explorada, entende Guedes. O profissional recebe preparo para trabalhar com os aspectos físicos desse paciente – capacidade funcional, muscular e desempenho físico. Com isso, ele pode atuar na reabilitação já no pré-operatório com exercícios físicos em esteira e em bicicleta ergométricas ou simplesmente caminhadas e exercícios em espaço livre. “Essa técnica não foi sequer explorada em trabalhos no pré-operatório, todavia no pós-transplante teve resultados encorajadores.”

A pesquisadora salienta que sempre houve um cuidado maior de se prescrever atividade física para um paciente antes do transplante, principalmente por conta do risco elevado de sangramento digestivo. “A atividade física exaustiva aumentaria as chances de sangramento pelo aumento pressão arterial”, comenta. Por essa razão, esses pacientes são desestimulados para a prática de atividade física. Infelizmente, a consequência é que eles se tornam sedentários e com grande potencial de ter prejudicado o seu desempenho funcional. O ideal seria uma abordagem desses pacientes em suas próprias cidades, com protocolos de atividades feitas sob supervisão.

Agora no pós-operatório imediato, pelo fato da força da musculatura respiratória sofrer uma perda importante, é preciso mantê-la íntegra para que tal paciente fique pouco tempo fazendo uso de ventilação artificial, não adquira pneumonia associada à ventilação mecânica e não tenha que voltar ao respirador logo após este ter sido retirado.

Uma abordagem diferenciada nessa musculatura poderia ser a saída, com exercícios respiratórios a fim de adquirir um maior volume pulmonar e, assim, não terem tantas complicações, entre elas dificuldades na troca gasosa e diminuição da oxigenação, o que comprometeria o transplante e a condição clínica do paciente. “O treinamento é recomendado em alguns casos, quando diagnosticada fraqueza”, aponta a autora.

Na opinião da fisioterapeuta, sua tese de doutorado representou avanços para a compreensão de vários temas envolvendo o transplante pois, em geral, todo trabalho que desenha um perfil gera muitas perguntas, tanto que até o momento pelo menos dois alunos se matricularam na pós-graduação para desenvolver seus projetos, coorientados por Guedes, seguindo a mesma linha de pesquisa.

Um dos trabalhos deve avaliar se a baixa capacidade física desses pacientes complica mais do ponto de vista respiratório no pós-operatório; outro trabalho indaga se esses pacientes com menor força muscular e menor capacidade física morreram mais em lista; e outro trabalho ainda, de uma aluna que deve iniciar doutorado em breve, irá avaliar os resultados do pós-operatório. Sua proposta é realizar intervenções. Além disso, quatro alunos da especialização da UTI já manifestaram interesse pelo assunto, agora com o perfil já desenhado.

Guedes foi fisioterapeuta dessa unidade no HC, contudo no momento atua como professora convidada do curso de especialização em Fisioterapia Respiratória em UTI da Unicamp e em outra instituição de ensino superior. A sua expectativa é que esta tese sirva de base a novos estudos e desperte a curiosidade de pesquisadores interessados na intervenção, pois é ela que pode melhorar a qualidade de vida e o desempenho do paciente, tanto em lista de espera quanto após o transplante, conclui.

Isabel Gardenal
ASCOM

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