Considerada uma doença rara, a ambiguidade genital é uma malformação congênita que dificulta ou mesmo impede a equipe médica a identificar, num primeiro exame clínico, qual é o sexo do bebê. A incidência apontada em trabalhos científicos recentes é de um caso para 2,5 mil a 4 mil nascidos vivos.
Desconhecida por muitos ou guardada a sete chaves pelos tabus que envolvem qualquer assunto relacionado à sexualidade, a doença, também conhecida como distúrbio da diferenciação do sexo, ganhou a atenção especial da médica endocrinologista Georgette Beatriz de Paula em sua dissertação de mestrado, orientada pelo professor Gil Guerra Júnior, coordenador do Grupo Interdisciplinar de Estudos da Determinação e Diferenciação do Sexo (Giedds) ligado ao Hospital de Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Foram analisados todos os 408 casos atendidos ao longo de 23 anos — entre janeiro de 1989 e dezembro de 2011 — no Hospital de Clínicas, vindos de diversas cidades do País.Ou seja, em um único serviço, com a mesma conduta médica e os mesmos exames. Foram avaliados a frequência dos diagnósticos, a idade e a definição do sexo dos pacientes.
De acordo com a Geogette, o diagnóstico do sexo de um recém-nascido é feito visualmente observando a genitália, mas em alguns casos isso não é possível. “Se o médico olha um genital e acha que ele é aparentemente masculino, mas não é caracteristicamente masculino, ou seja, parece homem ou parece mulher, tem alguma coisa que está errada e precisa ser investigada.”
No serviço do Hospital de clínicas, os especialistas citam dois grupos de pacientes. O primeiro, com evidente alteração genital que nem o pediatra teve condição de definir o sexo, ou aquele em que a alteração é sutil e só tardiamente o serviço é procurado. Segundo Guerra, há casos de pacientes que chegaram na faixa etária de 15 a 20 anos com alteração muito discreta.
Ele explica que as modificações que podem caracterizar a ambiguidade genital no menino são o pênis pequeno ou a abertura do canal da urina fora da posição normal, ou ainda não ter os testículos palpáveis. Na menina, a ambiguidade pode ser caracterizada pelo clitóris muito grande, fechamento dos grandes lábios — dando a impressão de uma bolsa escrotal —, ou a gônada palpável, que pode indicar um testículo.
Masculino – No estudo, Georgette observou, além da idade da chegada do paciente ao serviço, o cariótipo — a constituição dos cromossomos —, se já tinha registro civil, se já passou por mudança no registro, permanência no mesmo sexo e diagnóstico. “Dos 408 pacientes, 111 chegaram sem registro civil. O restante chegou registrado no sexo masculino ou feminino, mas, no final, depois de toda a investigação diagnóstica, a maioria ficou no sexo masculino, que foram 238 casos. Isso coincide também com a maioria que tem o cariótipo 46,XY”, explica Georgette.
Guerra acrescenta que esse cariótipo é a constituição cromossômica de um homem normal. “Todos os homens normais têm o cariótipo 46,XY”, diz Guerra.
Entre as explicações para a predominância dos homens, é que a formação dos órgãos genitais masculinos, interna e externamente, é mais complexa tanto do ponto de vista genético como hormonal, diferentemente da feminina.
A pesquisadora também pôde observar que os pacientes que chegavam mais precocemente eram do cariótipo 46,XX, de uma mulher, em função de um diagnóstico chamado hiperplasia adrenal congênita.
“Os pacientes que chegaram mais cedo foram com esse diagnóstico. Pelo risco de desidratação e de morte da doença eles acabavam procurando o hospital e era identificada a ambiguidade genital e encaminhado para o serviço especializado.”
Associação – Outro dado da pesquisa é que cerca de 15% a 20% dos pacientes apresentaram malformações em outros órgãos, como coração, vias urinárias, coluna e trato gastrointestinal.
“Os pacientes que têm malformação de um órgão têm uma chance maior de ter outras malformações. Na nossa pesquisa isso foi muito importante de identificar, que existe uma maior incidência de outras malformações neste grupo de pacientes com ambiguidade genital”, comentou Guerra.
O peso de nascimento abaixo de 2,5kg foi identificado em 42 casos do sexo masculino. “Na literatura, algumas explicações para esse fato são situações de insuficiência placentária, que poderiam levar à restrição do crescimento intrauterino e a uma maior frequência de ambiguidade genital. Então, essa seria uma explicação em indivíduos do sexo masculino”, afirmou Georgette.
Serviço inclui exames genéticos e correção cirúrgica
O Grupo Interdisciplinar de Estudos da Determinação e Diferenciação do Sexo (Giedds) atua com uma equipe multiprofissional especializada, formada por endocrinologistas, geneticistas, cirurgiões pediátricos, psicólogos e assistentes sociais, além de residentes e pós-graduandos.
No ambulatório, os pacientes passam por uma investigação para chegar a um diagnóstico. Isso inclui exames laboratoriais e avaliações genéticas. Já o tratamento passa pela correção cirúrgica da genitália e atendimento psicológico. “Os exames são caros, a investigação genética é cara e não se faz em qualquer lugar. Os cirurgiões têm que ser especialistas nessa área porque senão as correções ficam ruins”, ressalta Gil Guerra.
O suporte psicológico para o paciente e para a família também faz parte do tratamento. “Imagina o que é a preparação durante 9 meses para um sexo e de repente acontecer de nascer uma criança que não dá para definir se é menino ou menina ou que é o sexo oposto ao que foi definido no ultrassom durante a gestação. É uma coisa importante e angustiante e que você tem que dar suporte do ponto de vista psicológico”, ressalta Guerra.
É importante que o paciente seja encaminhado para o serviço de referência mais precocemente possível. Guerra e Georgette reforçam a importância da atenção dos médicos e pediatras que têm o primeiro contato com o bebê. “É importante que os colegas tenham um conhecimento sobre a ambiguidade genital para saber encaminhar precocemente para o serviço adequado. Examinou e teve dúvida, deve entrar em contato com o serviço de referência”, afirma Georgette.
“Nosso serviço atende o Brasil todo. Mesmo que o paciente não tenha condições de vir imediatamente, é importante que ele seja acompanhado por um geneticista, endocrinologista e pediatra”, acrescenta Guerra. Outra orientação é para que a criança não seja registrada no cartório civil enquanto ela não passar pelo atendimento médico especializado, já que a alteração do sexo no registro de nascimento pode ser muito trabalhosa.
No período da pesquisa, o Giedds atendeu um total de mais de 1 mil casos, mas 408 deles tinham diagnóstico de ambiguidade genital. Os demais receberam outros diagnósticos.
Trabalho vai para revista internacional
O estudo do também chamado distúrbio da diferenciação do sexo (DDS) realizado por Georgette é considerado pioneiro no mundo — pelo número de casos analisados, por ser mais homogêneo e mais importante para analisar resultados no longo prazo. O estudo feito em Campinas será publicado em breve em revista científica internacional.
De acordo com Gil Guerra, o principal trabalho dessa natureza realizado até então envolveu 600 casos, mas relacionados a todos os países europeus, envolvendo diferentes centros, métodos, condutas e diagnósticos diferentes. “Aqui vai ser o primeiro trabalho publicado na literatura com 408 casos acompanhados por uma mesma equipe, num mesmo serviço. Vamos submeter para uma importante revista internacional na área de endocrinologia. Mas com certeza é um trabalho de relevância porque ajuda não só a mostrar a frequência das diversas etiologias das causas de ambiguidade genital, como toda essa problemática de mudança de sexo. Então é um trabalho de grande interesse da comunidade científica”, completou.
SAIBA MAIS
Hermafroditismo, termo que caiu em desuso, pelo Consenso de Chicago de 2006, é uma das causas raras do distúrbio da diferenciação do sexo ou da ambiguidade genital, que corresponde a menos de 5% dos casos. O hermafrodita é o indivíduo que tem ovário e testículo. De acordo com os médicos, a pessoa pode ser uma mulher ou um homem absolutamente normal e ter ovário e testículo. Essa pessoa não obrigatoriamente tem ambiguidade genital, mas, em geral, apresenta a malformação. No passado, os casos de ambiguidade genital também eram tratados como hermafroditismo até pela comunidade médica.
Texto: Inaê Miranda (Correio Popular) | Imagens: Janaína Ribeiro