Os cateteres de eletrofisiologia são utilizados para diagnóstico e terapêutica de arritmias cardíacas em pacientes que não respondem a tratamento medicamentoso. Por meio de anéis dispostos em suas extremidades, eles captam os estímulos nervosos do coração detectando anomalias. Os dois modelos disponíveis são introduzidos através da veia femural. O cateter de diagnóstico se destina a localizar o ponto responsável pela anormalidade e o terapêutico ou de ablação, para a sua “queima”.
Nesses procedimentos são utilizados cateteres especiais, não tunelados, de alto valor agregado. O custo médio desses cateteres está em torno de R$ 4.500,00 e são empregados pelo menos dois por paciente, dependendo das dificuldades do exame. O reembolso praticado pelo SUS cobre em média apenas o custo de um cateter, o que torna imperioso o seu reúso, que é descrito na literatura especializada. No Brasil, as normas da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) estabelecem que caso o serviço de saúde opte por reutilizar ferramentas ou dispositivos hospitalares deverá estabelecer protocolo e validá-lo, embora não existam orientações para tanto.
Com o objetivo de elaborar e validar um protocolo para reutilização de cateteres de eletrofisiologia, não tunelados, estudo foi desenvolvido no Hospital de Clinicas (HC) da Unicamp pela enfermeira Mirtes Loeschner Leichsenring, responsável pelo grupo de reúso do hospital, orientado e coorientado, respectivamente, pelos médicos Plínio Trabasso e Maria Luiza Moretti, docentes da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp na disciplina de Infectologia.
O trabalho centrou-se na forma de limpar, esterilizar e validar todo o processo. A propósito, a pesquisadora explica: ”Embora se encontrem na literatura várias publicações de diferentes países que referendam a reutilização desses cateteres, não existe conformidade entre os métodos utilizados nem tampouco descrição de validação das etapas realizadas”.
A pesquisa, que deu origem à dissertação de mestrado, levou ao estabelecimento de um protocolo de limpeza e esterilização, validado na prática clínica, e constitui a primeira publicação do gênero no Brasil.
O estudo de custo-minimização empregado pela autora revelou economia de 84% no custo do cateter, considerando sete usos, e mostrou a viabilização do procedimento no HC da Unicamp, em um universo, como tantos outros no Brasil, escasso de recursos, pois os custos do procedimento são muito superiores ao que o SUS reembolsa. O processo empregado atende a legislação vigente em relação ao reúso, propiciando segurança ao paciente, além de garantir sustentabilidade econômica e ambiental.
A reutilização de dispositivos médicos, rotulados pelos fabricantes como de uso único, chamados de materiais não permanentes, é tema dos mais polêmicos na área da saúde. A atual legislação brasileira permite a reutilização desses dispositivos, mas estabelece que haja um protocolo de processamento, no qual os critérios de validação aplicados devem ser apresentados de forma detalhada, sendo cada serviço de saúde responsável legal pelo processamento praticado em sua instituição. A justificativa básica para a reutilização é econômica e, neste contexto, encontram-se os cateteres de eletrofisiologia.
Desenvolvimento do trabalho
Dentre os diversos modelos de cateteres, o de eletrofisiologia de ablação, utilizado para “queimar” o ponto do coração do qual provém o impulso cardíaco não desejável, foi considerado o cateter desafio por apresentar maior dificuldade de limpeza. A viabilidade de sua limpeza poderia, portanto, ser estendida para os demais tipos de cateteres.
No desenvolvimento do processo de limpeza foram realizados vários experimentos. A cada etapa não efetiva sucedia-se o incremento de um novo processo ou produto. O trabalho foi iniciado com uma limpeza manual com solução de detergente enzimático, evitando-se molhar ou imergir todo o cateter, pois se temia que o contato do líquido com as estruturas elétricas pudesse comprometer a performance do cateter, temor eliminado em testes subsequentes.
O detergente enzimático, de eficiência maior que os comuns, é usual em hospitais, pois contém protease, amilase e lipase, responsáveis pela quebra e remoção das proteínas, amidos e gorduras existente no sangue, proporcionando uma melhor eficiência no processo de limpeza dos instrumentais em central de matérias dos hospitais.
Para constatar a total remoção de sangue dos cateteres foram utilizados dois métodos. O primeiro constou da observação de todo o cateter em microscópio esteroscópio com aumento do campo de visão de até 80 vezes. Dessa forma, sempre que fosse observada presença de sangue, um novo incremento no processo de limpeza era acrescentando. Em decorrência, incorporou-se o uso de máquina de lavar ultrassônica (sonificação). Nestes casos, o tempo do ciclo inicial foi de cinco minutos sendo, depois, padronizado em 30 minutos. Somente após esse tempo de sonificação, constatou-se a remoção de todo o sangue passível de se observar pelo microscópio esteroscópio.
Mas para comprovar, ainda, a efetividade da remoção do sangue foi utilizado um teste rápido, (HemoCheck-S®), muito sensível e específico, capaz de detectar até 0,4 microgramas de hemoglobina em qualquer superfície que tenha tido contato com sangue. O uso deste teste levou a incorporação de mais uma etapa no processo de limpeza que foi a imersão da parte do cateter onde estão os eletrodos em água oxigenada por 20 minutos, seguida de uma sonificação em solução de detergente enzimático por 10 minutos. Para o desenvolvimento de todo este processo foram utilizados cerca de 70 cateteres de eletrofisiologia, em um trabalho de sete meses.
Depois destas fases o cateter foi encaminhado para esterilização em óxido de etileno, em firma especializada, que visava garantir que o equipamento estivesse totalmente estéril, ou seja, livre de quaisquer microrganismos e perogênio, que é um produto eliminado pelas bactérias Gran negativas e que em contato com a corrente sanguínea leva a um choque que pode ser fatal para o paciente. O limite tolerado para essas endotoxinas bacterianas é de 0,5 EU/mL.
Os primeiros laudos emitidos mostravam que os cateteres tinham valores de pirógenos acima desse valor máximo, problema que foi imediatamente contornado quando as lavagens passaram a ser feitas em água filtrada e não mais em água de torneira. Estava consolidado o protocolo, realizado durante 36 meses, que utilizou cerca de 350 cateteres, dois quais 144 de ablação.
Embora o trabalho validasse os processamentos em apenas uma marca de cateter, à medida que produtos de outros fabricantes sejam utilizados, o processo de validação precisa ser repetido, procedimento agora simplificado porque já existe um protocolo estabelecido.
Complementações
Paralelamente foram também verificadas a integridade e funcionalidade dos cateteres e realizada uma avaliação econômica no contexto do HC da Unicamp. A propósito, Mirtes esclarece: “Constatamos que, em média, depois da sétima utilização, esses dispositivos começavam a apresentar problemas de desgaste e precisavam ser descartados e estabelecemos então como parâmetro esse número de uso. Mesmo assim, eles são testados pelo médico antes do uso, e devidamente descartados diante de quaisquer problemas mecânicos”.
Por sua vez, um estudo do custo-minimização teve o objetivo de avaliar a repercussão que o descarte ou reutilização teriam no orçamento do hospital. Para tanto, a autora utilizou um estudo processo já existente. O resultado mostrou uma economia de 84% sobre o custo do cateter, quando utilizado sete vezes, o que permite cobrir os gastos decorrentes do procedimento. Ela enfatiza: “Sem essa economia não teríamos condições de bancar aqui no HC o número de atendimentos que fazemos”.
Conclui-se que o processamento foi validado em todas as fases, tanto da limpeza como da esterilização, com resultados que demonstraram eficácia do processo. Ou seja, ausência de material orgânico detectável nas superfícies do cateter e resultados de ensaios laboratoriais que comprovaram a esterilidade do cateter, com resultado de culturas negativas e presenças abaixo dos níveis estabelecidos em normas, de resíduos de óxido de etileno e de endotoxinas. Dessa forma a reutilização desses cateteres pode ser considerada segura para os pacientes e demonstrou ser economicamente significativa na realidade do HC da Unicamp.
Publicação
Dissertação:“Desenvolvimento e validação de protocolo para reutilização de cateter de eletrofisiologia no HC Unicamp”
Autora: Mirtes Loeschner Leichsenring
Orientador: Plínio Trabasso
Coorientadora: Maria Luiza Moretti
Unidade: Faculdade de Ciências Médicas (FCM)
Texto: Carmo Gallo Netto