O avanço tecnológico tem possibilitado aos médicos uma sensação de domínio sobre as doenças e a morte. No entanto é durante a residência, quando em geral ainda conta com poucos anos de idade – por volta de 26 anos –, que esse profissional depara-se pela primeira vez com a difícil tarefa de lidar com a finitude da vida e o desafio de comunicar a entes queridos notícias devastadoras.
No período de abril a agosto de 2019, a enfermeira e especialista em cuidados paliativos do Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp Roberta Antoneli Fonseca entrevistou 18 médicos-residentes que cursavam o primeiro ano de clínica médica e cirurgia geral e que atendiam pacientes em fase avançada de câncer e de outras doenças, já fora da possibilidade terapêutica de cura. A idade dos entrevistados variou de 24 a 30 anos – 72% eram homens e 28%, mulheres.
Os resultados deram origem à tese Formação médica em cuidados paliativos em um hospital público do interior do estado de São Paulo, defendida dentro do Programa de Pós-Graduação em Saúde, Interdisciplinaridade e Reabilitação da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. A pesquisa ganhou o prêmio de melhor tese de doutorado no XI Congresso Latinoamericano de Cuidados Paliativos, ocorrido no mês de março deste ano em Cartagena, na Colômbia.
O estudo propôs uma reflexão sobre a implantação e estruturação do serviço de cuidados paliativos no HC da Unicamp de modo a qualificar melhor a assistência prestada, a possibilitar mudanças no cuidado ao paciente em condição terminal e a colaborar na educação continuada dos médicos-residentes no que se refere a essa área. “Tendo em vista que o manejo da finitude humana é essencial para o saber dos médicos-residentes, pois a morte fará parte, mais cedo ou mais tarde, de seu cotidiano, faz-se necessário entender quais recursos disponíveis em nós, seres humanos e profissionais, podem servir ao cuidado daquele paciente que está em seus momentos finais. Como, efetivamente, podemos apoiá-lo quando sua cura já não é mais factível?”, questiona Fonseca.
Segundo a pesquisa, com o desenvolvimento tecnológico da medicina, a vida passou a ser mantida à custa de muito sofrimento, mesmo em situações nas quais não existe chance de cura ou melhora. Parece haver uma dificuldade por parte dos médicos quando se trata de compartilhar informações sobre o insucesso das terapias e, ainda, para interromper tratamentos que se mostram infrutíferos para a extensão do tempo de vida do paciente. “Os dias finais da vida de inúmeros pacientes fora de possibilidades de cura transcorrem entre procedimentos e medidas de obstinação terapêutica que fatigam seus corpos e os de seus familiares, em troca de uma mínima chance de se obter benefícios”, diz a pesquisadora.
Os médicos-residentes participantes do estudo apontaram a necessidade de criar disciplinas que abordem melhor a finitude da vida como parte natural da existência humana e que discutam formas de transmitir notícias difíceis, uma tarefa que requer outras habilidades. Habilidades como responder às emoções dos pacientes, envolver-se na tomada de decisão sobre condutas, lidar com o estresse criado pelas expectativas de cura da doença, acolher múltiplos membros da família e gerenciar todo o processo de cuidado.
A pesquisa mostrou que essas habilidades são ferramentas importantes no caso dos cuidados paliativos, pois aumentam a adesão ao tratamento e têm impacto psicológico positivo nos pacientes e nos familiares. Isso porque lhes permitem compartilhar medos, dúvidas e sofrimentos. E também lhes dá a oportunidade de resolver conflitos, contribuindo para a diminuição do estresse psicológico – inclusive da equipe de saúde –, e garantindo a autonomia do paciente, o controle dos sintomas que possam aparecer e a redução dos tratamentos ineficazes, com consequente promoção da qualidade de vida.
“A morte, apesar de inevitável em algum momento da vida do ser humano, não é uma questão simples de ser discutida, uma vez que, em nossa cultura, passa pela não aceitação e pela sensação de impotência. A equipe de saúde é capacitada para salvar vidas, mas não sabe lidar com o seu fim. É indispensável difundir as ideias sobre os cuidados paliativos, os embates, os consensos e os limites. O resgate do valor da relação humana, baseado na empatia e na compaixão, é o maior aprendizado de todos”, pondera a pesquisadora.
Durante a realização do estudo e na vivência diária junto às equipes de cuidado, Fonseca percebeu que a compreensão a respeito dos cuidados paliativos ainda é incipiente, mas que, aos poucos, vem se tornando mais difundida. “Embora o caminho a ser percorrido seja bastante espinhoso, as boas experiências do cotidiano têm nos presenteado com histórias de desfecho positivo e cheias de significado. Essas experiências vivenciadas pela equipe do serviço de cuidados paliativos no apoio aos médicos-residentes e às famílias frente à finitude da vida têm contribuído muito nesse aspecto”, comenta a pesquisadora.
Cuidados paliativos no HC
O Serviço de Cuidados Paliativos do HC foi criado em julho de 2018, com a participação de quatro médicos especialistas em medicina paliativa. Em junho do ano seguinte, o serviço ganhou um espaço físico, e Fonseca passou a compor a equipe interprofissional de cuidados paliativos do hospital. Ainda em 2019, o serviço atendeu 101 pacientes internados. No ano seguinte, marcado pela pandemia de covid-19, foram atendidos 161 pacientes e em 2021, 190. Nos meses seguintes, esses números aumentaram e, até outubro de 2023, o serviço havia realizado mil atendimentos.
“Esse crescimento se deve, principalmente, à compreensão das equipes de saúde sobre a importância de acolher o paciente e seus familiares nesse momento tão difícil de suas vidas”, diz a pesquisadora, que de 2019 a 2023 ocupou o cargo de vice-presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos do Estado de São Paulo.
O atendimento provido pela equipe interprofissional do serviço é oferecido a todos os pacientes internados no hospital, bem como àqueles em atendimento de urgência na Unidade de Emergência Referenciada (UER) – respeitando os limites manifestados por cada paciente e sua família. “Por atuarmos em um hospital-escola, a interconsulta formal ao nosso serviço é realizada pelos médicos-residentes, pois são eles, de fato, que estão na linha de frente do cuidado e fazem o intercâmbio com os chefes das diversas especialidades médicas e cirúrgicas”, explica Fonseca.
Matéria originalmente publicada no Jornal da Unicamp
Texto: Edimilson Montalti – Núcleo de Comunicação HC Unicamp
Fotografia: Shutterstock Photos | Suelma S. Tanaka (NIR-HC) | Rejane Wolff